
Title | : | Quantas Madrugadas Tem a Noite |
Author | : | |
Rating | : | |
ISBN | : | - |
Language | : | Portuguese |
Format Type | : | Paperback |
Number of Pages | : | 190 |
Publication | : | First published January 1, 2004 |
«Num tenho dinheiro, num vale a pena te baldar. Mas, epá, vamos só desequilibrar umas birras; sentas aí, nas calmas, eu te pago em estória, isso mesmo, uma pura estória daquelas com peso de antigamente, nada de invencionices de baixa categoria, estorietas, coisas dos artistas: pura verdade, só acontecimentos factuais mesmo. A vida não é um carnaval? Vou te mostrar alguns dançarinos, damos e damas, diabo e Deus, a maka da existência.
Transformo só o material pra lhe dar forma, utilidade. O artista molha as mãos pra trabalhar o destino do barro? Eu molho o coração no álcool pra fazer castelo das areias em cima das estórias...
Uma noite, quantas madrugadas tem?»
Quantas Madrugadas Tem a Noite Reviews
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"sabes o que é não sentir o coração e sentir o coração, tud’uma batida só, sangue leve no peito e lágrimas limpas a escorrer?"
(Ondjaki... podia ser nome de feiticeiro...)
No primeiro capítulo não entendi nada - mesmo com consulta ao glossário -; enfastiei-me, impacientei-me e preparei-me para desistir. Mas antes passei pelo Goodreads, a sondar opiniões, e li algumas "queixas" sobre o início mas elogiando a continuação. Continuei para o segundo capítulo e dei por mim a rir e, mais à frente, quase a choramingar. Voltei ao princípio e entendi tudo. Milagre? Não! O meu cérebro, simplesmente, adaptou-se à linguagem coloquial. (Num tá nada male escrito eu é que inda num me tinha habituado.)
Pela madrugada dentro, o narrador conta uma história a um amigo, o qual nunca fala apenas lhe vai pagando cervejas (gosto de pensar que este ouvinte é o leitor).
Só para fazer um pouco de sede para esta coisa maravilhosa...
Algumas personagens:
— Adolfodido é o morto, cujo nome provoca alguns constrangimentos. Deixou duas viúvas (DonaDivina e KiBebucha) que se descabelam pelo direito à pensão do falecido, que foi comandante de tropas em Namibe (sítio onde nunca houve guerra - nem sequer o morto foi militar - mas conseguiram o certificado do governo).
— KotaDasAbelhas é uma apicultora que decidiu matar a abelha rainha com sheltox para controlar as operárias. Consegue, assim, produzir um mel delicioso e que serve para tudo.
— Cão é o animal de estimação da KotaDasAbelhas, e supõe-se que seja o diabo em figura de canídeo.
— BurkinaFaçam é um anão que, além de uma banda musical, tem um táxi; mas com motorista porque ele tem de andar sentado de lado, numa cadeirinha, para parecer alto. Está também a pensar criar o Sindicato Nacional das Prostitutas.
— Jaí (diminutivo de venho já aí) é professor. Por ser albino, foi perseguido pela população que pensava que se podia curar a sida com os seus órgãos (a caça aos albinos aconteceu, não é fantasia de Ondjaki).
Há muitas mais personagens mas estas já dão uma ideia do que Ondjaki faz neste romance: brinca e critica; mistura magia com realidade; sempre transmitindo-nos a sua ternura imensa pelo povo angolano e por Luanda.
Até quase ao final estava indecisa entre as quatro ou cinco estrelas, mas quando ele me diz:
"no mô coração só vou guardar, para sempre, o tô sorriso agora na minha derradeira sentença que eu largo aqui pra nos despedirmos já..."
eu percebi que estava a sorrir e, depois da derradeira sentença, os meus olhos, arregalados de espanto, humedeceram-se.
Um livro que trata assim as minhas emoções é um livro de que gosto muito muito muito...
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"vou escrever na pedra a palavra amor - inventar uma textura na minha estória pessoal. há uma ruga na pedra sulcada pela minha lágrima. se a pedra sorrir vou me esconder no riso dela. se o vento vier vou alisar o tempo perdido e construir memórias.
primeiro vou beijar a mulher, depois a pedra.
se sobrarem beijos, vou atirá-los a favor do vento."
— Ondjaki
Ondjaki nasceu em Luanda, Angola, no dia 5 de Julho de 1977. Viveu e estudou em Luanda até à idade de entrar no ensino superior, altura em que vem para Lisboa, onde se licencia em Sociologia. A sua obra, poética e em prosa, está traduzida em várias línguas e já recebeu alguns prémios literários, entre os quais o Prémio José Saramago em 2013. -
“Primeiro estranha-se, depois entranha-se.”
Assim foi a minha relação com a escrita neste livro. Se nas primeiras páginas me custou um pouco e a leitura não fluiu tão naturalmente, quando lhe “apanhei o ritmo” fiquei embrenhada na escrita, na história, nos personagens… Adorei o humor deste livro e dei comigo muitas vezes a rir-me sozinha enquanto lia algumas passagens.
Foi a minha primeira experiência com Ondjaki e é, com certeza, para continuar! -
"Uma noite, quantas madrugadas tem? Andas a contar? Eu não. Lhes apanho só, conforme lhes vejo e sinto. Atrevo: uma só noite tem bué de madrugadas; cada uma dessas madrugadas tem bué de brilhos. Confesso-me aqui, nos lábios da sinceridade: gosto muito disso - acreditar no impossível das palavras, lhes maltratar no português delas, ser livre na boca das estórias e me deixar tar aqui sentado dentro de mim, abismático. E sonhar". (p. 103)
Descobri Ondjaki e me apaixonei - como me apaixonei por Guimarães Rosa e suas inventividades da língua portuguesa. "Quantas Madrugadas Tem a Noite" ganha o leitor no primeiro parágrafo que desde então já percebe estar em contato com algo incrível e inesperado. O estilo do livro absolutamente é coloquial, afinal a estória que penetra essa madrugada se torna conhecida numa conversa de bar, regada a muita cerveja. Nesse sentido, alguns leitores podem desanimar, pois muitos termos são desconhecidos ao falante do português brasileiro - é necessário recorrer com certa frequência ao glossário apresentado no final do livro para uma melhor compreensão, mas é possível dispensá-lo para uma maior fluência na leitura, sem grandes prejuízos.
Ao leitor, é permitido conhecer apenas as falas do narrador dos fatos fantásticos com compõe a estória, que percebemos ser um personagem bastante dramático e misterioso, de um humor ácido. Sabemos que o interlocutor ouve com atenção a estória que lhe é contada e quase em nada interfere (como nos leitores), mas financia as cervejas que são tomadas incessantemente e tornam as falas ainda mais confusas e inacreditáveis, misturando poesia e suspense. Um livro divertido e nada convencional, vale a pena conhecer o jovem autor angolano - embora eu tenha descoberto que esse não é o melhor livro pra se iniciar sua obra. -
Não foi uma leitura fácil, aquele primeiro capítulo é duro de mastigar, o tipo fala, fala e diz-me muito pouco. Continua, mas a linguagem vai ficando diferente, mais poética, por vezes tão diferente que eu me chego a questionar se não será outra pessoa, se cada capítulo não será uma personagem diferente a contar a mesma história. Afinal, quantas versões tem uma história? Certamente tantas quantas madrugadas tem a noite.
Adormeci algumas vezes lá pelo meio, é certo, mas cheguei ao fim e não me arrependi, porque aquela revelação final, apesar de ser algo suspeitável, não deixou de me surpreender. Também se aprende algum calão angolano, que pode vir a dar jeito. -
"Um viajante é o quê?, num é aquele que vem de mais longe? Se você vem de longe, quantos caminhos é que você cruzou, quantas pessoas e o mundo delas, quantas visões você viu, quantas magias?" (página 154)
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Este livro de Ondjaki é diferente das "duas vozes" que já lhe conhecia: a voz da poesia ou dos contos mais intelectualizados, mais "pesados" de interpretar, e a sua outra voz, também poética, mas infantil em que tudo constitui a onservação transformadoa de uma criança de tudo o que em sua volt se apresenta e acontece. No caso desta segunda "voz" inscrevo livros como "Os da Minha Rua" "A Bicicleta Com Bigodes", "A Avó Dezanove e o Segredo do Soviético", por exemplo...
Ora este "Quantas Madrugas tem a Noite" transpõe (se é lícito dizer isto assim) a voz ingénua da criança para a de um adulto entornado de ternura por tudo aquilo que vê, mas com a capacidade de contar sem floriados, por vezes quase cruamente, o que ocorre, outras vezes deixando a poesia irromper até das cruas palavras e eventos...
A estória é quase surrealista mas o livro, cujo primeiroi capítulo é talvez o de mais difícil leitura, vale a pensa ser lido. Para além da literatura, constitui igualmente um documento sociológico e cultural, um quadro quiçá surrealista mas deixando transpareceruma dada realidade...
A dificuldade do primeiro capítulo é que somos confrontados subitamente com uma linguagem muito mais "cerrada" do que as que Ondjaki usa noutros livros seus e ainda não começou a "acção" propriamente dita que torna o enredo interessante... Quem desista aqui já não lerá o melhor do livro, que tem um glossário no fim para poder ser utilizado quando há termos desconhecidos para leitores não angolanos.
A ler.
Maria Carmo
21 de Janeiro de 2012. -
Gostei deste livro. O princípio foi complicado, porque linha sim linha não tinha que ir ao glossário ver o que queriam dizer determinadas palavras e a estória também não começou logo a desenvolver-se. Depois comecei a entrar no ritmo da estória e da escrita e a apreciar. A estória acaba por ser engraçada e, sobretudo mais para o fim do livro, o autor brinda-nos com passagens e pensamentos muito interessantes. Agradou-me particularmente a forma como o autor articula a exposição dos problemas e defeitos da cidade e do país com a descrição do amor sentido pelos mesmos, sobretudo quando contrapõe o paraíso com a cidade de Luanda.
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ao final do primeiro parágrafo, eu podia escolher este livro como um dos meus preferidos. tentar uma nova aproximação com a língua, resgatar e inovar construções orais no papel, ousar - todas essas coisas que os contemporâneos brasileiros fingem fazer, nunca demonstram. talvez perdamos tempo demais procurando o sentido do ofício, enquanto ondjaki, aos trinta, se não sabe um sentido, não se importa com isso na hora de praticá-lo. ele se assume, assume seus riscos. e o resultado é um livro rico e cheio do mel da kotadasabelhas.
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Esperava mais de um livro com um título tão encantador.
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O que mais me impressionou nem foi o enredo em si, mas sim o lirismo da escrita, absolutamente fascinante.
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Ver aqui:
http://missingmywonderland.blogspot.c...
"Sabes o que é não sentir o coração e sentir o coração, tud’uma batida só, sangue leve no peito e lágrimas limpas a escorrer? Faz conta foste na pesca, rede e tudo, e em vez do peixe grande meteste a rede na água e te veio uma nuvem? Se é impossível? Eu sei lá, avilo, eu sei lá… Desde cadengue que ando então a ver as nuvens dançar nas peles do mar, e me pergunto: assim calminho, liso tipo carapinha com desfrise, o mar não tem nuvens dele também? De onde eu venho é muito longe, por isso, juro mesmo, nasci de novo. Vou te confessar: espanto é só aquilo que ainda nunca tínhamos vivido com nossa pele!" – página 9
Assim começa este romance, produto da prodigiosa imaginação de Ondjaki, escritor angolano. Quando decidi ler este livro já sabia o autor tinha recebido vários prémios pela sua obra (Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco 2007, Prémio Jabuti na categoria juvenil e prémio Grinzane por melhor escritor africano de 2008), para além de ser considerado um dos melhores escritores da sua geração em África. Além disso já tinha lido e ficado agradada com O Assobiador (romance, 2002) e Há prendisajens com o xão (poesia, 2002), ambos presentes num livro que saiu na Colecção Frente e Verso da revista Visão. Deste modo, tinha motivos mais do que suficientes para esperar uma boa história, e não fiquei desapontada, antes pelo contrário, fiquei maravilhada.
A troca de cervejas, numa tarde e pela madrugada fora, alguém de muito, muito longe, de tão longe que parece que nasceu de novo, compromete-se a contar uma história. Num monólogo imenso, toda a narrativa se passa em Angola, mais precisamente na Luanda contemporânea. Inclui um conjunto de personagens fora do comum que se cruzam e entrecruzam em situações, no mínimo, surreais, remetendo-nos para o realismo mágico de que García Márquez é mestre: chuvadas apocalípticas; um cadáver que é roubado e que circula do tribunal para a polícia e da polícia para o tribunal num táxi devidamente convertido em carro da polícia pela colocação de um cartaz e de uma sirene; alguém que comanda e convive com abelhas como se delas fosse rainha; um cão assustadoramente aterrador, julgando-se até que poderá ser a encarnação do diabo; um cego que vê tão bem que até se esquiva de uma bala são alguns dos exemplos.
AdolfoDido é o morto. Os seus amigos preparam-lhe o funeral. Mas não é fácil... Disputado por duas mulheres, o seu corpo é apreendido várias vezes pela polícia, e não pára de circular de um lado para o outro. Ainda casado no papel com DonaDivina, vive com KiBebucha. A primeira só o desejou por interesse: pensado que AdolfoDido era influente por ter um primo do éme (Movimento Popular de Libertação de Angola), casa-se com ele esperando uma vida farta. Rapidamente se desilude. À segunda não lhe pode escapar, pois por detrás das suas seduções corporais, desconfiava-se que lhe arreava bem... Ficamos também a saber que, através de uma falcatrua, se disse antigo combatente (num país onde nunca houve guerra!), quando na verdade é demasiado novo para isso - ninguém se dá ao trabalho de o constatar. Por isso lutam as viúvas pelo seu corpo e, claro, pela pensão devida. Sempre se disse que o coração tem razões que a razão desconhece, não é?
BurkinaFaçam, o anão, sente muito a perda do seu grande amigo AdolfoDido, aquele que um dia lhe salvou a vida. Apoia a criação fictícia de um sindicato para as prostitutas para, por um lado, poder gozar de todas as regalias que as suas festas orgíacas podiam proporcionar e, por outro, para fazer felizes as suas amigas Eva e Madalena, também elas prostitutas. Tem um táxi, fundamental para o desenrolar da história, já que quase todas as personagens passam pelo seu interior, e servem-se dele para as suas movimentações. Jaí, o albino, professor e comunista, está grato a Burkina por o ter salvo de uma população sedenta da sua cabeça para a cura da sida - ai, as superstições! Conhece um grande amor no decorrer da história... Ambos são amigos de Adolfo e tentam por tudo poupar o que dele resta às inclemências das viúvas, da justiça, da população, das intempéries.
É na casa da Kota das Abelhas que se reúnem e onde ocorrem alguns dos momentos mais decisivos. Após ter «assassinado» a abelha-rainha e transformado a sua própria casa numa colmeia gigante na qual assumiu o papel de rainha passaram-na a chamar deste modo. Subsiste do mel que elas fabricam e utiliza-o em tudo: cremes regeneradores que mantêm a juventude e conservam os cadáveres (inclusive o de AdolfoDido), bolos, bebidas, etc. Vive com o Cão [cuja figura está presente na capa desta edição]: dono e senhor da sala, é um cão assustador que causa um terror imenso em quem se atreve a olhá-lo.
Retrato da coloquialidade angolana, a linguagem pode apresentar-se como um desafio a superar. Felizmente no final do livro há um glossário com o significado de quase todas as expressões utilizadas e, como elas são constantemente repetidas, no decorrer da leitura é fácil apreender o seu significado, ao ponto de se deixar de o consultar. Por exemplo, cumbú é dinheiro, ngaia é garrafa, entre outras. Nem por isso nos deixa de parecer poética e sedutora, onde cada palavra surge no local exacto. De qualquer forma, um pequeno truque que utilizei foi o de imaginar que me falavam com um forte sotaque angolano (qualquer pessoa já o ouviu, nem que fosse na televisão!), meloso pelas cervejas que se sucediam e pelo prazer de uma boa conversa.
Admiravelmente o narrador conhece todos os pormenores e nunca perde o fio à meada, ainda que os apartes sejam recorrentes. Apartes esses que não deixam de ser importantes e que, muitas vezes, contêm reflexões aparentemente tão simples, mas tão, tão bonitas:
"Há muitos teatros – pensas que é só com bilhete e cadeira sentada com mosquitos que vais no teatro? E a vida?, esqueceste esse palco puramente verdadeiro a acontecer todos dias, a se entornar nos teus olhos de lágrimas que nem vês?" – página 31
"Foram então procurar a KiBebucha, na casa dela da Ilha, onde ela gostava de não ficar dentro de casa, mas lá no quintal-rua, início do passeio da casa dela, onde espreitava o mar – vício dos olhos dela desde pequena. Num te falei?, isto é só grandes coisas, efeitos da natureza nas pessoas mesmo: céu, mar, lua, sol, coisas assim enormes não escapam nas vias do coração, meu. Qual é a tua inclinação? Nada, nada mesmo? Pra ti pôr do sol e pôr de merda nenhuma é a mesma coisa? E a lua de noite? Nada mesmo? Porra, meu, dás pena, quer dizer, estás neste mundo só pra o que der e vier, não queres meter o corpo e o coração nele?" – página 54
De um modo geral, alguns dos temas abordados são a corrupção e o poder das influências num país ainda marcado pela memória de guerras recentes, sejam elas contra o invasor branco ou de luta pelo poder; a superstição e a credulidade dominantes num povo simples; um sistema burocrático que nem sempre supre as falcatruas que vão surgindo, mas que nem por isso deixa de zelar por quem escuta e julga; a falsidade e o egoísmo; e, acima de tudo, a amizade pela qual ainda tudo é possível.
Porque, afinal de contas, nada do que foi contado são devaneios de um bêbado... Tudo pertence a uma África desconhecida, palpitante de vida. Desconhecida pois erradamente é-nos incutido que África não passa de um continente perdido, com uma população reduzida à miséria e à doença. Palpitante de vida, já que o seu povo, ultrapassando todo esse sofrimento, nunca deixou de sorrir. -
Temo ser injusta, mas não consigo ler em dialeto. Para mim ler tem de ser como respirar, ou seja, normal, sem dar por isso.
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4.5/5
https://app.thestorygraph.com/reviews... -
Quantas Madrugadas Tem a Noite não é um livro fácil de ler. Apercebi-me enquanto o lia que o contacto que tive com a literatura lusófona e africana, basicamente Pepetela, Mia Couto e José Eduardo Agualusa, não me preparou para esta escrita tão intrinsecamente africana. Durante todo o livro vi-me forçada a consultar o glossário presente no fim do livro para perceber o que todas aquelas palavras significavam. Para além desses termos angolanos, que estão presentes em todo o livro, este está escrito numa linguagem muito oral, muito coloquial, propositadamente com erros ortográficos e gramaticais, o que torna a leitura, no inicio, um pouco difícil. No entanto, à medida que vamos entrando na história, a linguagem deixa de incomodar e conseguimos apreciar a beleza das palavras e das ideias. A beleza do mundo fantástico para onde Ondjaki nos leva e onde nos apresenta os protagonistas improváveis e caricatos desta história. Temos anão BurkinaFaçam, um homem de bom coração que vive dos típicos esquemas, sempre rodeado por duas prostitutas, Eva e Madalena. Temos o Jaí, um albino que é professor por vocação, honesto até à raiz dos seus cabelos amarelos. Temos Adolfodido (assim mesmo como está escrito), antigo combatente sem idade para combater, cuja morte põe o país em polvorosa, uma vez que, não se consegue decidir quem irá ser a primeira viúva do estado, se DonaDivina (ex-mulher) ou KiBebucha (actual companheira). Adolfodido nem na morte deixa de fazer jus ao nome de fodido. :) Temos a KotaDasAbelhas, que matou a abelha rainha e foi promovida a rainha da colmeia, comandando as abelhas no fabrico do melhor mel que já se provou. Com ela vive um cão, perdão, com ela vive O Cão. Um ser assustadoramente grande, que ocupa a melhor divisão da casa e que a KotaDasAbelhas serve. Todos o temem e ninguém sabe que criatura é e de onde veio, talvez do Inferno? Não sei. :)
Em troca de birras (cervejas) um homem, com uma sede que parece infinita, num qualquer bar de Luanda, conta esta história a um outro homem, pela noite fora até surgirem os primeiros sinais da madrugada.
Não sei como são os outros livros de Ondjaki, mas sobre este só tenho coisas boas para dizer: é divertido, cheio de passagens inspiradas e inspiradoras e está muito bem escrito, ou melhor, a história está muito bem contada. Parece-me que ele consegue prender muito bem nas palavras o espírito luandense e é inevitável ficar rendida a toda a mística, que aparentemente só os escritores africanos parecem conseguir passar para o papel. Gostei muito e recomendo. :) -
Os escritores africanos, pelo menos aqueles que eu conheço mais (Mia Couto, Pepetela, Ondjaki, Agualusa) contextualizam muito a sua escrita num espaço próprio que é a sua terra, a sua gente. Por isso são livros que por vezes podem ser de leitura complicada já que por vezes é difícil ao leitor colocar-se no ambiente da personagem (se lhe for desconhecido) ou da própria linguagem (já que a matriz da língua portuguesa utilizada não é muitas vezes a mais próxima daquilo a que estamos habituados).
Ondjaki explora sempre as vivências angolanas, com os seus personagens bem vincados (para quem conhece Angola, e Luanda em particular, é fácil reconhecer-mos aqueles cenários, aquelas pessoas e aquele dia-a-dia). E neste livro sobretudo com uma linguagem muito urbana (urbana no sentido de nos conseguir aproximar mais do personagem em vez do enquadrar-mos quase como apenas uma mero narrador).
É um livro com uma linguagem muito corrente e específica de Angola que nos obriga a ir constantemente ao glossário. Mas é igualmente uma obra que nos leva ao imaginário africano que mais não é do que a própria realidade vivida diariamente em Angola. -
Imagine that you're going out with someone to have a few drinks. That someone is going to tell you a story, a real one, a story that needs to be interrupted to add this or that, going back and forward - exactly how a conversation goes between beers. That's how this book is written.
Quantas Madrugadas Tem a Noite was written by the Angolan writer Ondjaki. I read it in its original language, Portuguese with a lot of Kimbundu, a African language from Angola, to mixed in. The narrator, this guy who you're buying beers, tells you the story of a group of characters and the events they face after the death of their dear friend Adolfo Dido (a hilarious wordplay, something consistent throughout the book).
I don't know how to put it in words but this book warmed my heart. It's so beautiful in its simplicity and sincerity. The kind of book you finish and you want to read it again. -
Uma história que é uma grande diversão, mas também mais um exemplo da prosa poética deste escritor que joga tão bem com as palavras. Uma obra que se lê com algum esforço, tem que se consultar o glossário com frequência, sobretudo no início, mas depois já se sabem algumas palavras e aprecia-se a história bastante original de Adolfo Dido, contada de forma oralizante, pessoal e transmissível, no meio de quantas madrugadas, não sabemos, e regada por umas quantas "ngalas".
Conta-se também uma cidade, Luanda, que, segundo, o contador da história, não é um local inseguro. -
Quantas Madrugadas tem a Noite... Nenhum livro me preparou para este, e foi o primeiro que li de Ondjaki. mas no fim da primeira página já tinha percebido que iria ser uma das minhas experiências literárias favoritas. O discurso coloquial, enraizadamente africano é uma novidade deliciosa, e uma das obras que mais me fez rir. Recomendo vivamente!
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Em Quantas Madrugadas Tem a Noite, somos transportados para uma noite num bar de Luanda e transformamo-nos no interlocutor do narrador, um grande apreciador de cerveja e de estórias.
Embalados pelo narrador, acompanhamo-lo madrugada adentro, enquanto ele desenrola o novelo da história de Adolfo Dido. Este homem de nome caricato tinha falecido por causa da mordidela de uma carraça do grande cão que ocupava a maior sala da Kota das Abelhas (uma senhora que produzia mel e era grande amiga de Adolfo e dos seus companheiros). O sossego da morte, contudo, não chegou depressa ao corpo de Adolfo: as suas ex-mulheres, Dona Divina e Kibebucha, tentando lucrar com a mais recente proposta do governo de compensar monetariamente as viúvas de antigos combatentes, fingem que Adolfo era um antigo soldado e reclamam para si o subsídio do governo. Com o avançar do caso, as proporções obrigam a que se abra um processo judicial que envolverá também os amigos e familiares do falecido.
Quem receberá o dinheiro? Será a fraude de DonaDivina e Kibebucha descoberta? Porque será o cão da Kota das Abelhas tratado como um sultão?
Aquilo que começou por ser uma leitura destinada à familiarização com a variante angolana do português acabou por se revelar uma experiência divertida e diferente de todas as que já tinha tido.
A peculiaridade mais evidente deste livro é o facto de ele ter sido escrito num registo popular da língua angolana. Ondjaki eleva a linguagem de um homem num bar de Luanda a um estatuto de linguagem literária, recorrendo inclusivamente a palavras e expressões cujo significado só conseguimos descortinar se consultarmos o glossário no final do livro.
Para além de constituir uma história com uma intriga muito original e um final surpreendente, Quantas Madrugadas Tem a Noite também consegue transmitir a essência do povo angolano, numa época de guerra e de cheias. Narrado pela voz de uma personagem impregnada da simplicidade alegre do povo, este livro não só nos faz rir como também nos deixa a refletir acerca dos temas que o narrador abraça nos seus devaneios: a mudança, o peso do passado, o valor de todos os momentos, a morte e a quantidade de madrugadas que pode ter uma só noite. -
História contada em algum bar em Luanda, entre cervejas e mais cervejas, com personagens tão estranhos quanto BurkinaFaçam: um homem de imenso coração e, curiosamente, sempre acompanhado por duas prostitutas de nomes bíblicos: Eva e Madalena.
Jaí, um albino professor de vocação, com infinita humildade (apesar de ter sofrido perseguição e assédio em sua própria carne devido a algumas tradições absurdas)
Adolfodido (sim! É o nome dele), o personagem principal do romance, um homem que está morto, mas que é o centro de toda a história, e cuja morte causa curiosidade que deixa o leitor em suspense o tempo todo.
DonaDivina e KiBebucha, ex-mulher e atual companheira de Adolfodido, respectivamente, brigam pelo direito da viúva ao falecido.
KotaDasAbelhas, que matou a abelha rainha e foi promovida a rainha da colméia, com autoridade para governar as outras abelhas na fabricação do melhor mel da história. Ela mora com um cão enorme e assustador, que curiosamente ocupa o melhor lugar da casa. Todo mundo se pergunta de onde esse cão aterrador veio, e se ele realmente pertence à família canida ou simplesmente saiu do inferno.
Surpreendente capacidade de Ondjaki de misturar imaginação, sátira, tragédia e humor, com uma linguagem muito coloquial e enriquecida com muitas palavras locais, que nos forçará a ir ao glossário. Curioso é o talento de criticar o país, tornando-o uma sátira hilariante. Isso me lembra muito o bruxo corvo de Ngugi wa thiong'o. -
"Às vezes me volta esse pensamento: ando perdido no mundo, na imensidão duma profunda madrugada: minhas estórias onde procuro morrer fosse um louva-a-deus nos atos carnais do amor: atrevimento de morte, estória e tristeza no acabar de contar. Te pus, te ponho: os olhos brilham mais é na escuridão; pirilampo espera noite para ser alguém; peixe fica seco é dentro d'água, fora dela é que ele transpira de morte; etecetera, muadiê, pra te dizer: de noite é que perco a vergonha de ser eu mesmo e abro as torneiras do imaginado: meu coração de ser assim, contador. Pouca inventice, transformo só o material para lhe dar forma, utilidade. O artista molha as mãos pra trabalhar o destino do barro? Eu molho o coração no álcool para fazer castelos das areias em cima das estórias..., e o mô espelho são as madrugadas."
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"...eu tenho mais estória que tu, eu te ponho as danças falantes, e vamos navegar aqui, nas borbulhas da cerveja."
Às vezes aparece um livro que estava a tua espera. Aquele que brilha na estante, e foi feito para o teu momento, lido nas madrugadas das noites. -
Lá consegui entrar na onda do livro e acabei-o... A dificuldade inicial foi porque ele escreve como se fosse um angolano a falar (e é mesmo) e porque o meu cérebro está habituado a diálogos com "ponto final, parágrafo, travessão". Por isso acredito que até foi bom ter insistido na leitura do livro, porque não há nada pior do que uma mente fechada aos tipos de escrita mais comuns.
Quanto à história, gostei da reflexão (e mais não digo). Deve ter sido o livro de onde tirei mais frases porreiras, muitas lições de vida,muitas frases simples a descrever situações mesmo muito complicadas...
Gostei!